sexta-feira, 29 de abril de 2011

Religião? Tô fora!

                
               Cresci na igreja católica. Fui à catequese, fiz a primeira comunhão e a crisma. Todo o domingo comparecia às missas, até que o padre falou mal de pessoas homoafetivas. E que bom que ele falou, pois tomei vergonha na cara e percebi que eu estava agindo feito um idiota, insistindo em fazer parte de um grupo que simplesmente não me aceita. Levantei e deixei a igreja, não voltei. Hoje em dia, alguns ainda insistem para que eu vá a alguma missa. Não vou. Não vou e me sinto bem estando longe de tudo aquilo, de todos aqueles pensamentos preconceituosos, que apesar de antigos, as pessoas não os abandonam. Depois que parei de ir à igreja católica com 15 anos, comecei a trabalhar em uma lanchonete, cujos donos são de uma religião protestante. Quase toda a clientela da lanchonete era de pessoas dessa igreja. Um calvário. Por dois anos estive no meio de pessoas egoístas, materialistas, que na igreja pregavam o que não cumpriam, não seguiam. Falavam sobre o amor ao próximo, mas suas atitudes eram de incompreensão, preconceito e intolerância. Por muitas vezes, me senti ofendido e diminuído. Fui me desapegando da ideia de religião e criando uma espécie de auto-espiritualidade, onde eu não precisaria de um padre, nem pastor, para dizer o que é certo ou errado.
                 Em nenhum momento senti falta da igreja católica, que não pôde responder minhas dúvidas, que me excluiu e disse que eu iria para um suposto inferno, simplesmente por existir. Em nenhum momento senti vontade de participar de alguma religião protestante, pois discordo quase que completamente de suas crenças. Minha irmã espírita me convidou a frequentar um centro espírita. Em parte, me encontrei dentro desta doutrina, que me explicou coisas que eu não entendia e desde pequeno sentia. Me falaram sobre um não-fim, um não-inferno, um Deus não-mal, não-injusto, não-vaidoso. Lá, me senti aceito, um jovem não-doente, não-anormal, até o dia em que disseram o que me matou, “O ‘homossexualismo’ é algo que deve ser evitado. Os gays precisam deixar de ser gays”. Me retirei do grupo e não voltei. Não posso deixar passar em branco um pensamento desta proporção. Não posso deixar passar o fato de que o grupo em que estou inserido, acredita e prega que eu possa mudar tudo em mim, de que eu não sofreria para se adequar a padrões ridículos que não fazem sentido diante do que realmente é ser um humano. Não posso simplesmente virar o rosto e continuar entre pessoas que preferem respeitar regras, tradições e convenções de uma crença cruel, e desprezam o fato de que não é a sexualidade que dirá como é o caráter de alguém.
               “Não tenho nada contra homossexuais, o que não aprovo são os atos homossexuais”: PAPO FURADO! Confesso que fico nervoso quando escuto alguém falando algo assim. Me soa como um “Não tenho nada contra gays, contanto que fiquem longe de mim”. Minha vontade é ir até a pessoa e perguntar: “Então você é cruel o bastante para desejar que alguém passe a vida inteira fingindo ser o que não é? Se privando de viver a sua sexualidade, sua afetividade, se sentindo pressionado, vazio, magoado, triste?” Gostaria que as pessoas entendessem que não escolhemos ser gays, “Ah, vou virar gay porque é legal, porque é colorido e serei descolado”. Não é assim. Não existe um botão que podemos apertar e nos transformarmos em heteros como em um passe de mágica. Mas como é que as pessoas podem entender isso, se as religiões insistem em bater na mesma tecla de que é pecado, pecado, pecado? Como é que as pessoas podem entender isso, se muitos ainda dizem que ser gay é uma doença? Dizem que alguém se torna gay por influências de outros gays. Sou gay e se você me perguntar se isso é verdade, direi que não. Não cresci em contato com gays, apenas com heterossexuais. “Crianças criadas por casais homossexuais serão homossexuais”. Verdade?! Então porque sou gay se fui criado por um casal heterossexual?
               Aprendi com tudo isso, que o importante é eu me aceitar exatamente como sou, porque só assim terei chance de ser feliz. Errado seria se eu me rendesse às normas e vivesse infeliz, negando diariamente a mim mesmo. Isto sim, seria uma doença, seria a doença MEDO. Não abandonei minha espiritualidade, ela continua aqui, mas agora é algo positivo e apenas meu. Entendi que sozinho não posso acabar com o preconceito e intolerância contra a sexualidade, mas posso fazer minha parte expressando o que penso. Existem as “zonas perigosas”, onde não posso ir sem sofrer algum tipo de ataque, onde não posso sair sem ao menos estar com um arranhão. Uma dessas zonas é a religião, que abandonei quando percebi que ao contrário de servir como caminho, me confundia e condenava. Quem ficaria perto de um cão feroz, correndo o risco de ser mordido a qualquer momento? Quem tomaria uma dose de veneno todos os dias? Quem aceitaria viver em uma redoma de vidro, imaginando como deve ser bom lá fora, como deve ser bom poder deitar na grama, olhar para o céu e dizer, “Meu Deus, como é bom ser eu mesmo. Obrigado!”.

P.S: O tema desta crônica é, "Não posso fazer parte de um grupo que não aceita minha sexualidade". Não estou aqui para convencer ninguém de nada, apenas para explicar os motivos que me levaram a deixar certos grupos. Não generalizei, não comparei. O que fiz foi dizer o motivo de não frequentar esses grupos.

domingo, 24 de abril de 2011

O som do piano


               Esta não é uma noite fria. Não tão fria o bastante para combinar com as peças de piano que escuto.  Não entendo de peças de piano, mas são tão bonitas. Não entendo das teclas pretas e brancas. Não entendo de nada tão clássico assim. Mas gosto de escutá-las porque me sinto bem. Sinto-me um jovem retirado de seu mundo e colocado em outro, ao menos por alguns segundos. Vieram me dizer que sou culto. Culto? Sorri. Meu mundo não é culto, quis responder, mas não disse nada. “Não sou culto”, ficou em minha mente. Sou uma espécie de bastardo de meu tempo. O passado é interessante, mas não me atrai como atrai aos historiadores. Eu prefiro o contemporâneo. Costumo dizer que sou egoísta demais para me preocupar com o que não tem nenhuma relação direta comigo. E peças de piano não tem essas relações. Apenas relações de subjetividade. Machado de Assis não tem uma relação direta comigo, ele fala de pessoas de outra época. Ele usou de uma linguagem que não entendo e quando leio, gosto de ler sem fronteiras. Gosto de fazer tudo sem fronteiras.
               Tive um professor que me chamava de problema. Ensinava filosofia e foi com ele que descobri a paixão. Paixão pelo mundo, pelas palavras, pelos pensamentos e pelo corpo de homem. Na aula ele falava sobre o comportamento humano enquanto eu vagava pelas ruas de Roma. Uma Roma Negra, nas celas dos gladiadores. Eu era o anjo pálido que deveria salvá-los, mas os levava para o meio do Coliseu e gritava, Pão e circo! De repente voltava para a aula e para o professor. Em pé, ele gostava de ficar. Encostado no quadro negro, falava como se não fosse homem de verdade, como se tivesse saído de algum livro. Cabelos castanhos lisos, barba por fazer. Sempre aquela barba por fazer. Não deve ter muito tempo, deve ser desses homens ocupados, eu pensava. E pensava também que deveria precisar de alguém, alguém que cuidasse dele. Alguém que segurasse em suas mãos quando pensasse em voar, se esconder nas estrelas. Porque eu sabia seu segredo. Ele tinha olhar de quem se esconde em estrelas. Tinha olhar de quem sustenta um mundo próprio. Dele roubei este olhar.
               Roubei o olhar, mas queria mais, muito mais. Queria que fosse meu gladiador. Mas desta vez, não o levaria para o Coliseu. Levaria para minha cama de garoto de quatorze anos. Levaria para a sala de sua casa, onde me mostraria seus livros, suas músicas. Depois iria para o banho e eu ficaria esperando, mesa à luz de velas. Ele apareceria cheirando à loção de barba, vestindo apenas um roupão e abriria o vinho. J’aime mon amour. Me mostraria tudo o que fosse belo. Me ensinaria tudo o que havia descoberto. Eu seria teu discípulo. Ele, meu salvador. Me salvaria dos garotos do fundo da classe, me salvaria dos garotos nos intervalos, por todos os lugares, nos pátios, corredores. Sempre com palavras agressivas, “apaixonado pelo professor” eles caçoavam. Ele me salvaria, pois todos veriam que eu era correspondido e calariam suas bocas ásperas, sem charme, sem sabedoria, sem paixão.
               Escrevi um bilhete, mas não consegui deixar em sua mesa. Ficou no lixo. No outro dia, novo bilhete. Lixo. Em casa, eu me perdia. Me perdia em meu corpo, em minha mente alucinante. Professor, eu pensava. Pensava nele do início ao fim, como no poema de Álvares de Azevedo. Meu corpo gelado, o líquido quente e a paixão. O piano ao fundo, as promessas nas paredes do Louvre. Minha alma saia do corpo e voava até sua casa, até o jantar à luz de vela, a loção de barba, seu pescoço em meu rosto liso, minhas mãos por todo o seu corpo. Minha alma em sua casa. Eu precisava que meu corpo também estivesse lá. Então decidi que era chegada a hora. Eu, gladiador fugitivo. Escravo perdido na Roma Negra. Procurando por meu mestre. Um discípulo desacorrentando em busca da sabedoria. Pés gelados, mãos trêmulas, lábios vermelhos. Pele pálida de anjo caído. Na porta de sua casa, bati, bati, bati. Quando abriu, não usava roupão, não usava loção de barba. Me olhou assustado, falou meu nome. Meu nome! Pedi que repetisse. Perguntou se eu estava bem. O que havia acontecido. Respondi que o meu amor é que havia acontecido. Me chamou de louco. Disse que aquilo poderia colocá-lo em perigo.
               Não! Não era loucura, tentei dizer. Não poderia ser. Ainda gritei que o louco era ele, por não ter percebido nada. Então uma mulher loura, talvez uma ninfa, apareceu junto dele, segurando-o pelo ombro e perguntou o que estava acontecendo. Olhei-o nos olhos assustados. Ele era um solteirão que precisava de alguém. Minha esposa, ele respondeu. Minha esposa e eu ficamos um ano separados, mas decidimos reatar. Tudo aconteceu tão rápido. Me senti tão ridículo que sorri. Sim, sou gladiador, não sou anjo, pensei. Sou gladiador e os garotos na escola serão os leões. Foi então que o Imperador apareceu na esquina em uma motocicleta e parou junto da calçada. O professor sorriu, como se tivesse encontrado a solução para qualquer coisa. Gritou para o rapaz que me levasse em casa. Este é meu filho, apresentou-o. Venha cá, cara. Te levarei pra casa, foi a resposta. Ainda trêmulo, caminhei até o rapaz como se pedisse desculpa. Quando arrancamos ele perguntou o que havia acontecido, que estava chegando de uma festa. Se eu era aluno de seu pai. Confirmei. Perguntou se eu sabia guardar segredo e quando respondi que sim, mandou que eu o segurasse com força e acelerou. Para trás ficaram os gladiadores, os anjos, as ninfas, os imperadores, as peças de piano. Lá na frente perdi minha virgindade.