Sobre Jefferson Reis

               
               Minha mãe ficou grávida de mim com 38 anos. Ninguém esperava que eu viesse ao mundo. Foi uma surpresa. Meus pais haviam há tempos parado de pensar em filhos, mas o fato é que destronei minha irmã mais nova depois de mim e fiquei com o lugar de caçula. Minha infância foi linda, minha adolescência solitária e cheia de traumas. Minha vida como adulto? Na verdade não sei se sou exatamente um adulto, já que ainda moro com meus pais e não trabalho. Quero deixar bem claro que não trabalho por falta de tempo, ok? Sem essa de vagabundo. Eu estudo. E estudar pode ser uma coisa bem complicada. Isso de emprego eu deixo para quando me formar, o que acontecerá só no final do ano que vem.  Sou complicado! Noooossa, como sou complicado. Quando coloco uma coisa na cabeça, não paro enquanto não consigo ou quebro a cara tentando. Sou orgulhoso e isso me atrapalha às vezes. Sou desses que não dá o braço a torcer. Por outro lado, me acho um cara romântico. Não ao ponto de mandar flores ou fazer serenatas, mas adoro me apaixonar.
               Também gosto de gostar das coisas. Gosto de ler (não leio de tudo, algumas coisas são chatas demais), ver filmes, seriados e ouvir músicas. Gosto daquele tipo de literatura mais íntima, quando o escritor escreve como se estivesse pensando, quando fala com realismo e emoção de coisas que acontecem por ai, ou que, por pura loucura, ou vontade, desejam que aconteçam.  Gosto de filmes e seriados dramáticos, drama é comigo mesmo. Me faz pensar, acelerar as batidas do coração.  Quanto à música, não sou tão exigente. A música me ganhar é o que importa. Confesso que as músicas que me ganham são quase sempre rock, dance music e MPB. Adoro neons, principalmente aqueles letreiros de motéis. Tenho um gato chamado Sr. Jericó. Tenho mania de ler revistas de trás para a frente. Gosto de panquecas e achocolatado. Se eu tivesse que me descrever usando metáforas, seria assim: Um cara perdido na vida, não perdido de perdição, mas perdido por não conseguir se encontrar. All Star, mochila nas costas, fone de ouvido, vontade de fazer algo que nem sabe. Um cara e seu mundinho particular. Quase sempre só, acostumou-se a ser assim. Abaixo vai um conto que escrevi para mim mesmo em meu último aniversário


 Eu – existência

           Fazia coisas bobas, mas que achava tão cheias de significado, como andar no meio fio (ou meio frio) tentando não cair, anotar os trechos preferidos dos livros que lia em um caderno. Acreditava ser apenas mais um cara perdido na vida, desses que andam por ai chutando pedrinhas, escrevendo palavrões nos vidros empoeirados dos carros. E tudo era tão cheio de poeira, os bares, as rodovias, as árvores, o céu. Gostava da noite, principalmente as frias, com céu estrelado. Gostava do que era gelado e de ser sempre o mais gelado quando se encostava a outro corpo humano. Às vezes, ousava escutar uma ou outra música romântica e imaginar a vida como um clipe, mas logo se tornava fugitivo, agressivo, como se a música estivesse ameaçando-o de todas as formas, então corria para os rocks gritantes, onde tinha certeza de estar entre amigos.  Tinha um mundo próprio, apenas dele, feito de texturas, formas, cheiros, cores, sons. Ali se trancava. Buscava a solidão como um viciado busca a droga. Sabia rir sozinho, sorrir para o horizonte, chorar sem que ninguém soubesse. E sabia também ser alegre do jeito dele, sem interferências, pessoas para dizer o que era bom, o que devia fazer para ser feliz, que a esperança era a última que morria. Ele achava que não. Esperança era apenas mais uma palavra bonita e que morte, essa nem existia.
               Quando chovia ficava junto à janela, sentindo a chuva e olhando os pingos nas poças de água que se formavam pelo quintal. O pingo batia na água que espirrava para cima, depois se formavam aquelas bolinhas de onda que ficavam cada vez maiores e mais fracas, até desaparecerem. Tudo isso muito rápido, fração de segundos. Se lembrava de quando era criança e a mãe lhe dizia que se tratavam de cavalinhos de água. Tão nostálgico, sentia saudades até do que não vivera, do que nunca pertencera à sua vida. Se lembrou de que havia lido em algum lugar, que no romantismo, a primavera é relacionada à infância. A dele não, nada de primavera e muito de verão e inverno.  Verão pelas chuvas compridas e grossas, água por todos os lugares, calor e água no fim da tarde. Inverno pelas brincadeiras sozinho. Você sente frio e você mesmo se esquenta. Saía cheio de agasalhos para brincar no quintal. Com um pedaço de galho desenhava no chão, peixes, estrelas, casinhas, mulheres gordas. Infância imperfeita, torta, brinquedo quebrado e ele amava. Amava a umidade da vida. Criança com cheiro de azul, textura de nuvem.
               Depois da infância a tempestade, as confusões se tornando certezas, como raios por todos os lados. O caminho enlamaçado de antes, agora apenas quadro abstrato na parede. Passava horas, mergulhado na voz da roqueira baiana. O irmão perguntava às vezes se estava tudo bem, a mãe dizia que deveria sair mais de casa, o pai, ah o pai, esse não dizia nada, não valia a pena dizer. Cresceu morto, quase nunca falava. E os outros não percebiam que ele não queria o convencional, que o tradicional lhe fazia mal. Ainda buscava na casa um abrigo, um abrigo diferente. Andava pelos cômodos como a procurar passagens secretas. Às vezes as encontrava dentro da própria mente, doente, transcendente, fantasiosa. Escrevia coisas em cadernos velhos que logo ficavam esquecidos. O violão que ganhara na infância dependurado na parede do quarto, quase intocado, exceto quando se sentia leve e azul, como blue e poesia, então pegava o instrumento e arriscava algumas notas. As cordas de aço machucando as pontas dos dedos, cobrando um sacrifício para falar sons. E o garoto isolado, seguia cantando as palavras de homens e mulheres que escreviam palavras tristes e bonitas para que vozes nem sempre bonitas pudessem dar vida ao que parecia morto.
               E a música era literatura cantada, onde o garoto se sustentava, pobre, feio, intenso, tão dependente de si mesmo, tão amarrado no que ele chamava de alma. Tão jovem e tão só. E isso era uma espécie de “coisa boa”, pois podia ficar sozinho absorvendo todos os sons e se tornando ainda mais frio e duro. Apático e forte. Gostava de se imaginar andando pelo deserto em uma noite fria, ou de remar sozinho um pequeno bote em uma lagoa imensa, negra e bela. E seguia vivendo nos sonhos. Tornou-se homem sonhador, sonho, dor, amor, ironia. Mas tornou-se homem. Um homem no fim da tarde, onde o tempo já não é mais dia, muito menos noite, uma transição, uma ilusão, uma brincadeira de Deus. E era tão feliz por poder caminhar vendo o sol se pôr e as estrelas surgindo aos poucos. O vento fresco fustigando-lhe o rosto e ele sorrindo para o nada, apenas ouvindo a música de dentro de sua cabeça, vivendo a literatura que ficava escrita em seus passos. Sentindo intensamente a beleza profana e trágica que existia lá no fundo, bem lá no fundo de seu próprio eu. Um Eu - azul, Eu - sacrifício, Eu - existência.


Jefferson Reis