domingo, 24 de abril de 2011

O som do piano


               Esta não é uma noite fria. Não tão fria o bastante para combinar com as peças de piano que escuto.  Não entendo de peças de piano, mas são tão bonitas. Não entendo das teclas pretas e brancas. Não entendo de nada tão clássico assim. Mas gosto de escutá-las porque me sinto bem. Sinto-me um jovem retirado de seu mundo e colocado em outro, ao menos por alguns segundos. Vieram me dizer que sou culto. Culto? Sorri. Meu mundo não é culto, quis responder, mas não disse nada. “Não sou culto”, ficou em minha mente. Sou uma espécie de bastardo de meu tempo. O passado é interessante, mas não me atrai como atrai aos historiadores. Eu prefiro o contemporâneo. Costumo dizer que sou egoísta demais para me preocupar com o que não tem nenhuma relação direta comigo. E peças de piano não tem essas relações. Apenas relações de subjetividade. Machado de Assis não tem uma relação direta comigo, ele fala de pessoas de outra época. Ele usou de uma linguagem que não entendo e quando leio, gosto de ler sem fronteiras. Gosto de fazer tudo sem fronteiras.
               Tive um professor que me chamava de problema. Ensinava filosofia e foi com ele que descobri a paixão. Paixão pelo mundo, pelas palavras, pelos pensamentos e pelo corpo de homem. Na aula ele falava sobre o comportamento humano enquanto eu vagava pelas ruas de Roma. Uma Roma Negra, nas celas dos gladiadores. Eu era o anjo pálido que deveria salvá-los, mas os levava para o meio do Coliseu e gritava, Pão e circo! De repente voltava para a aula e para o professor. Em pé, ele gostava de ficar. Encostado no quadro negro, falava como se não fosse homem de verdade, como se tivesse saído de algum livro. Cabelos castanhos lisos, barba por fazer. Sempre aquela barba por fazer. Não deve ter muito tempo, deve ser desses homens ocupados, eu pensava. E pensava também que deveria precisar de alguém, alguém que cuidasse dele. Alguém que segurasse em suas mãos quando pensasse em voar, se esconder nas estrelas. Porque eu sabia seu segredo. Ele tinha olhar de quem se esconde em estrelas. Tinha olhar de quem sustenta um mundo próprio. Dele roubei este olhar.
               Roubei o olhar, mas queria mais, muito mais. Queria que fosse meu gladiador. Mas desta vez, não o levaria para o Coliseu. Levaria para minha cama de garoto de quatorze anos. Levaria para a sala de sua casa, onde me mostraria seus livros, suas músicas. Depois iria para o banho e eu ficaria esperando, mesa à luz de velas. Ele apareceria cheirando à loção de barba, vestindo apenas um roupão e abriria o vinho. J’aime mon amour. Me mostraria tudo o que fosse belo. Me ensinaria tudo o que havia descoberto. Eu seria teu discípulo. Ele, meu salvador. Me salvaria dos garotos do fundo da classe, me salvaria dos garotos nos intervalos, por todos os lugares, nos pátios, corredores. Sempre com palavras agressivas, “apaixonado pelo professor” eles caçoavam. Ele me salvaria, pois todos veriam que eu era correspondido e calariam suas bocas ásperas, sem charme, sem sabedoria, sem paixão.
               Escrevi um bilhete, mas não consegui deixar em sua mesa. Ficou no lixo. No outro dia, novo bilhete. Lixo. Em casa, eu me perdia. Me perdia em meu corpo, em minha mente alucinante. Professor, eu pensava. Pensava nele do início ao fim, como no poema de Álvares de Azevedo. Meu corpo gelado, o líquido quente e a paixão. O piano ao fundo, as promessas nas paredes do Louvre. Minha alma saia do corpo e voava até sua casa, até o jantar à luz de vela, a loção de barba, seu pescoço em meu rosto liso, minhas mãos por todo o seu corpo. Minha alma em sua casa. Eu precisava que meu corpo também estivesse lá. Então decidi que era chegada a hora. Eu, gladiador fugitivo. Escravo perdido na Roma Negra. Procurando por meu mestre. Um discípulo desacorrentando em busca da sabedoria. Pés gelados, mãos trêmulas, lábios vermelhos. Pele pálida de anjo caído. Na porta de sua casa, bati, bati, bati. Quando abriu, não usava roupão, não usava loção de barba. Me olhou assustado, falou meu nome. Meu nome! Pedi que repetisse. Perguntou se eu estava bem. O que havia acontecido. Respondi que o meu amor é que havia acontecido. Me chamou de louco. Disse que aquilo poderia colocá-lo em perigo.
               Não! Não era loucura, tentei dizer. Não poderia ser. Ainda gritei que o louco era ele, por não ter percebido nada. Então uma mulher loura, talvez uma ninfa, apareceu junto dele, segurando-o pelo ombro e perguntou o que estava acontecendo. Olhei-o nos olhos assustados. Ele era um solteirão que precisava de alguém. Minha esposa, ele respondeu. Minha esposa e eu ficamos um ano separados, mas decidimos reatar. Tudo aconteceu tão rápido. Me senti tão ridículo que sorri. Sim, sou gladiador, não sou anjo, pensei. Sou gladiador e os garotos na escola serão os leões. Foi então que o Imperador apareceu na esquina em uma motocicleta e parou junto da calçada. O professor sorriu, como se tivesse encontrado a solução para qualquer coisa. Gritou para o rapaz que me levasse em casa. Este é meu filho, apresentou-o. Venha cá, cara. Te levarei pra casa, foi a resposta. Ainda trêmulo, caminhei até o rapaz como se pedisse desculpa. Quando arrancamos ele perguntou o que havia acontecido, que estava chegando de uma festa. Se eu era aluno de seu pai. Confirmei. Perguntou se eu sabia guardar segredo e quando respondi que sim, mandou que eu o segurasse com força e acelerou. Para trás ficaram os gladiadores, os anjos, as ninfas, os imperadores, as peças de piano. Lá na frente perdi minha virgindade. 

12 comentários:

Gabriel disse...

cool

NeO R. disse...

Você surpreende, Neurotic..

Coisa mais carnal-visceral-total-humano-limpo-puro-sujo-descoberta-crueza-realidade...

Adorei o conto.

La na frente, la na frente, a virgindade...

Sandro Batista disse...

Jefferson, só tenho uma coisa pra dizer: SENSACIONAL!

Vc cria uma atmosfera envolvente, consegue passar com exatidão sensações, e o final é avassalador!

MUITO BOM MESMO!

http://estacaoprimeiradosamba.blogspot.com/

Sou dos Poetas disse...

Quanta propriedade, criatividaade, o que posso eu me perder em falar desse texto? A junção temporal entre um presente e um passado e o meio, ah o meio é toda palavra que não se fala: "um bilhete, lixo". Os gladiadores, o piano, quanto seres para se chegar a um nada: lá na frente perdi minha virgindade... Este texto mostra o quanto você tem potencial, espero um dia ler um livro seu, enquanto isso me sustento com os textos daqui. Parabéns, não vou elogiar demais, pois ainda... Espero que um dia me leia (entenda) também...

Anônimo disse...

é perfeito , você escreve como ninguém. consegue fazer a gente viajar.
Principalmente quando a tanta conexão com os contos como é comigo. me sinto muito ligado. sério , perfeito !

@_denisb

Anônimo disse...

Quantos sentimentos intensos, tantas experiências lindas... um texto-viagem que voa por sobre as cidades e as normatividades e nos transporta a um tempo-espaço-lugar onde não é necessário mais nos dizemos isso ou aquilo ou aquilo outro para descobrir ou ter sabe-se lá o quê. Apenas SOMOS. Seres a flutuar, com ou sem os pés fincados no chão. Muitas coisas podem ser fincadas além dos pés, meu irmãozinho, e flutuar para locais onde poucos pés podem tocar.

Sucesso com o novo Blog!

Beijo.

Francorebel.

Anônimo disse...

Seguindo, é claro.

Marcelo Soares disse...

Lembro quando conversamos no twitter sobre esse blog, que, no dia, você ainda o criaria. Fiquei curioso, lembro até que a gente discutiu sobre o seu curso de cronicas. Juro que fiquei curioso para le-lo aqui, enfim, li, gostei, recomendei e voltarei.

.....gosto de fazer tudo sem fronteiras.

Abraço

Gegê Lima disse...

Escreve muito bem... =D
seguindo.

Unknown disse...

que e lindo adorei o texto gostei muito do seu blog
faiz uma visita no meu ?
http://walmoon23.blogspot.com/

Fabricio disse...

nossa, viajei legal lendo isso, muito boa a maneira a qual você escreve, faz o leitor viajar pela história

É Bru pra você disse...

Muito obrigada por comentar no meu blog, e se você quiser mesmo conhecer algum dos meus mini-conto é só seguir o link abaixo:
http://contosemisterios92.blogspot.com/search/label/Mini-Contos

Me inspirei muitas vezes lendo alguns contos e me espelhando neles (mais nunca copiando).
Amei seu blog, belo texto!

Abracos

Postar um comentário